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Manifesto em defesa do Direito à Educação Superior e à Assistência Estudantil

Publicado em 19-09-2016

Manifesto em defesa do Direito à Educação Superior e à Assistência Estudantil (veja aqui o documento original)

A IV Pesquisa de Perfil dos (as) Graduandos (as) das IFES, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-reitores de Assistência Estudantil (FONAPRACE), apresenta-nos um cenário particular, recheado de inúmeros indicadores comprobatórios de que o ensino superior federal se tornou mais acessível, popular e inclusivo. Todavia, e pelas mesmas razões, gestores (as) públicos (as) têm diante de si a responsabilidade de fazer avançar este processo, superando os velhos níveis de desigualdade do país, dando as condições para que discentes em situação de vulnerabilidade social e econômica possam gozar das mesmas oportunidades educacionais que seus colegas mais abastados, isto é, garantindo que a educação superior, tal como reza a Lei Federal 12.852/2013 (Estatuto da Juventude), seja um direito de todos.

Antes de tudo, somos hoje nas IFES mais negros (as). Em 2003, autodeclarados (as) brancos (as) somavam 59,4% da população dessas instituições, em 2010 esse índice caiu para 53,93% e em 2014/5 reduziu para 45,67%. Na tendência oposta, autodeclarados (as) pretos (as) têm crescido em participação nas IFES na respectiva cronologia de 5,9%, para 8,72% e 9,82%. Pardos (as), na mesma trajetória, foram de 28,3% para 32,08 e em 2014/5 para 37,75%. Em outras palavras, 47,57% dos (as) estudantes das IFES são negros (as). Em valores absolutos, quase triplicamos sua participação, comprovando o sucesso das políticas de democratização do acesso e das cotas.

Entretanto, ao que se pode constatar, além de enfrentar a questão racial no seu acesso, as Instituições Federais de Ensino Superior também o tem feito no aspecto da renda, uma vez que 66,19% de seus discentes vivem com renda per capita média familiar de até 1,5 salário mínimo, sendo que 31,97% vive com até 0,5 salário mínimo, e 21,96% vive com renda entre 0,5 e 1 salário mínimo. Dentro do perfil de vulnerabilidade social e econômica, os (as) discentes que vivem com até um salário mínimo representam 81,47%.  Constata-se aqui um efeito explosivo e bem vindo das cotas sobre o ingresso daqueles que possuem níveis de renda mais baixos, que levou a média de renda per capita dos discentes para R$ 916,80, com destaque para a média das regiões Norte e Nordeste que não superam os R$ 717,00.

Lembremos ainda que o corte de 1,5 salário mínimo é o mesmo que o Decreto do PNAES estabelece para cobertura de seu público alvo e em situação de vulnerabilidade social e econômica. Em outras palavras, dois de cada três estudantes encaixam-se no perfil vulnerável, um valor até 50% maior do que aquele registrado na pesquisa feita em 2010. Em que pese este cenário nacional, deve-se atentar também para o fato de que regionalmente as disparidades são ainda maiores, pois nas regiões Norte e Nordeste este percentual chega aos 76%.

Como explicar o duplo movimento de mudança no perfil: a) crescimento de 50% no público alvo das ações do PNAES; e b) o crescimento explosivo nos estratos de menor renda? O Fonaprace atribui a uma oportuna conjunção de fatores e políticas públicas. Inicialmente, reconhecemos que a Lei Federal 12.711/2012 (lei de cotas) constituiu um importante mecanismo de democratização do acesso, que somada ao sistema Enem Sisu permitiu maior mobilidade territorial. Além disto, o país experimentou mais de uma década de políticas de valorização real do salário mínimo, crédito, emprego e renda, que não só deslocaram uma fração relevante da população para a condição de cidadãos (ãs) capazes de fruir o direito ao ensino superior, mas também trouxe o mesmo nível de ensino para o horizonte destes estratos. Na sequência, reconhecemos também que a trajetória de crescimento dos valores do PNAES permitiu que este volume de ingressantes vulneráveis acreditasse na permanência e efetivamente permanecesse vinculado às IFES. Se observarmos também que o volume de estudantes das redes particulares atendidos pelo PROUNI com renda entre 1 a 1,5 salário mínimo tem aumentado razoavelmente, poderemos entender porque este estrato perdeu parte de sua participação.

Daqui se depreendem várias exigências aos (às) gestores (as) responsáveis pelas políticas para ensino público federal.  Primeiramente, se reconhecemos que 2/3 dos (as) discentes das IFES estão em situação de vulnerabilidade social e econômica, deve-se extirpar o velho mito de que as IFES são redutos da elite brasileira, argumento comumente utilizado para justificar o fim da gratuidade do ensino. Porém, deve-se igualmente reconhecer que esta fração majoritária da população universitária possui sua permanência garantida por um instrumento jurídico frágil, o PNAES, enquanto este for somente um decreto presidencial ou simplesmente uma política de governo.

Por todos os dados apresentados, defender a transformação do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) em uma Política Nacional de Assistência Estudantil é um dever daqueles (as) que defendem o avanço no acesso e na inclusão de estudantes em situação de vulnerabilidade social e econômica a educação superior pública. Mais do que isto, é o reconhecimento do seu significado social no campo da proteção social ao (à) estudante das IFES. O FONAPRACE, assim, compreende que todo o sistema de ensino federal está em risco dada a natureza jurídica do PNAES e o novo perfil discente, e recomenda fortemente que seja aprovada pelo Congresso Nacional uma Política de Assistência Estudantil na forma de lei federal. Consolidar o processo de democratização do ensino superior do Brasil é uma missão inarredável.

Com efeito, o desafio da permanência de 66,19% dos (as) discentes, dentre esses com mais de 81% com renda per capita de até um salário mínimo, somente pode ser enfrentado a partir do compromisso com a disponibilidade orçamentária proporcional. Hoje sabemos que os recursos destinados ao PNAES, muito embora historicamente crescentes, ainda são insuficientes para o atendimento de toda a demanda, implicando em evasão. A referida proporcionalidade na disponibilidade orçamentária deve levar em consideração também a desigualdade regional, que pesa de forma especial sobre duas regiões do país. Portanto, a matriz de distribuição de recursos orçamentários requer revisão, respondendo proporcionalmente à nova realidade. No mesmo diapasão, precisa-se reconhecer que a alteração do perfil dos discentes e as novas demandas consequentes, sobrecarregam as equipes da assistência estudantil de todo o país, da ampliação do número de análises socioeconômicas à quantidade de serviços prestados, requerendo que a distribuição de vagas para servidores seja sensível à nova conjuntura. Somos os mesmos em quantidade de servidores para atender um público 50% maior do que aquele registrado em 2010.

Por outro lado, há enorme riqueza e diversidade no perfil encontrado, em boa medida reproduzindo outras lógicas de desigualdade para além das registradas para o marcador racial e renda. Falamos aqui das desigualdades de gênero. As IFES continuam fundamentalmente femininas, com 52,7% de seu público. No entanto com discrepâncias evidentes no que tange às suas rendas, ou seja, em média uma discente das IFES tem renda per capita de até R$ 835,00, enquanto um discente aufere R$ 1.007,00. Decompondo este quadro de renda pelo corte cor ou raça, percebemos que as estudantes pardas possuem renda per capita média mensal familiar de R$ 695,00, enquanto autodeclaradas pretas R$ 605,00, quilombolas R$ 489,00, indígenas não-aldeadas R$ 583 e indígenas aldeadas R$ 463,00.

Salta aos olhos que as IFES, tal como toda a sociedade brasileira, reproduzem desigualdades raciais, de renda e de gênero. Tais desigualdades sempre implicarão dificuldades para aproveitar as oportunidades educacionais que as IFES oferecem, fazendo do direito à educação um privilégio. A não ser que políticas de assistência estudantil sejam capazes de diminuir as desigualdades de acesso às oportunidades. A comprovação é nítida quando observamos o perfil daqueles (as) que usufruem das oportunidades de mobilidade nacional e internacional. Há um claro recorte de renda e de sexo, pois a mobilidade internacional é masculina e de difícil acesso aos menos abastados. Da mesma forma, as atividades de pesquisa (PIBIC), Extensão, Ensino (PIBID) também são preferencialmente ocupadas por estratos de renda mais elevados. Isto posto, é missão urgente das IFES produzir políticas afirmativas, políticas de assistência estudantil que promovam equidades, criando condições internas de justiça e contribuindo para que o país também possa construir condições de existência mais democráticas. Como também é urgente que órgãos de fomento, tais como o CNPQ, tornem seus editais capazes de superar a exclusão, combinando critérios de mérito, inclusão e equidade.

Tal consideração está calcada na firme certeza de que as IFES desempenham um papel fundamental no processo civilizatório do país, constituindo, inclusive e dentre vários outros aspectos, como um importante mecanismo de promoção de justiça social. Os dados reforçam esta percepção, uma vez que 65,34% de nossos discentes já possuem nível de educação formal superior ao de suas mães e ainda maiores do que de seus pais. São jovens que representam esperança de mobilidade social para as famílias e maior justiça social para o país. O desafio posto é sua permanência e, na sequência, a conclusão do curso. No caminho outras dificuldades se apresentam, pois 11,78% de todos os (as) discentes das IFES possuem filhos, número mais expressivo na região Norte (19,73%), sendo que vários (as) deles (as) são obrigados (as) a deixar seus rebentos sozinhos (as), levarem para universidade, etc. Não por outra razão o PNAES possui a política de creche como um de seus eixos.

Outra dificuldade recorrente é a necessidade de trabalhar. Do universo pesquisado, 35,39% dos (as) discentes trabalha, com presença superior de discentes do sexo masculino e regionalmente mais expressivos no Sul do país. Em cruzamento com o número de horas dedicadas ao estudo, concluímos que trabalhadores (as) dedicam um número menor de horas e normalmente possuem jornadas de trabalho diárias superiores a 20 horas. Isto significa que o trabalho ocupa uma parte significativa das horas semanais, concorrendo com o estudo e, obviamente comprometendo a formação discente.

Outra constatação importante diz respeito à origem escolar do público pesquisado. Deve-se ter claro que a maioria (60,16%) fez toda sua trajetória da educação básica integralmente na rede pública, destacando que quanto mais recente for o ingresso, maiores são os valores alcançados, sendo que aqueles (as) que ingressaram após 2013 já correspondem a 64,53% de estudantes com vida escolar exclusiva em instituições públicas.

Todavia, há discrepâncias relevantes a serem destacadas, pois a clivagem racial demostra uma relação direta entre cor da pele e origem escolar, comprovadas pelo quantitativo de 68% de pardos, 75,6% de pretos não quilombolas, 78,3% de pretos quilombolas, 66,9% de indígenas não aldeados e de 85,7% de indígenas aldeados cuja origem escolar está vinculada absolutamente às escolas públicas. Deve-se reconhecer que, para além de políticas afirmativas para negros e indígenas, as políticas de permanência para remanescentes de quilombos e indígenas aldeados merecem destaque no rol das ações de assistência estudantil.

No tocante à qualidade de vida, o público pesquisado apresenta um perfil preocupante. Aproximadamente 61% dos (as) discentes das IFES é sedentário (a), não realizando atividades físicas ou limitando-as às frequências inferiores a uma vez por semana. Deste percentual de sedentarismo, as mulheres são majoritárias. As razões que explicam o sedentarismo podem ser diversas, mas a própria pesquisa sinaliza que 33% dos (as) pesquisados (as) acusam que as IFES não possuem as condições para a prática de esporte ou lazer. As implicações para a permanência, para o desempenho acadêmico, para a ambientação, para o bem estar e a qualidade de vida, são muitas. Preocupa-nos, portanto, a sua saúde.

Quando perguntados se procuram o serviço de saúde, mais de 60% ou nunca procura ou somente o faz em casos de extrema necessidade, sendo que mulheres procuram mais do que os homens e estratos com renda inferior procuram menos. Trata-se de um público que, em pelo menos 30% de seu conjunto, fez ou faz uso de medicação psiquiátrica, apresentando dificuldades emocionais para desempenhar suas atividades acadêmicas (80%), sendo que quase 60% sofre de ansiedade, quase 20% de tristeza persistente, 10% medo ou pânico, 32% insônia, 6% ideia de morte e 4% pensamento suicida. Os dois últimos valores merecem destaque, uma vez que em termos absolutos poder-se-ia dizer que quase 60 mil discentes tem ideia de morte e temos aproximadamente 40 mil potenciais suicidas. Reforçamos aqui a importância de uma equipe em número e qualidade capaz de lidar com este desafio, garantindo a permanência e, também, salvando vidas. Mas estas equipes devem ser orientadas por políticas nacionais ainda ausentes e, por tudo que aqui se apresentou, urgentes. Tratam-se das políticas de esporte e lazer, de saúde e de cultura.

Ainda no tocante à qualidade de vida, interessava-nos saber quais dificuldades impactam mais decisivamente sobre a permanência e o desempenho acadêmico do corpo discente. Percebemos na pesquisa que as dificuldades financeiras respondem pelas dificuldades acadêmicas de 42% dos (as) discentes, seguidas pela carga excessiva de trabalhos estudantis (31,14%), da falta de disciplina de estudo (28,78%), relação professor-estudante (19,8%), dificuldades de aprendizado (16,22%), dentre outras. Importa notar que 2,1% (quase 20 mil estudantes) destacou que a violência física sofrida tem impactado em seu rendimento acadêmico, assim como a violência sexual (1,07% ou mais de 10 mil estudantes) e as discriminações e preconceitos (9,76% ou 91 mil estudantes). Aqui importa salientar que a assistência estudantil, para além da pecúnia, teve, tem e terá um papel fundamental no acompanhamento psicossocial e pedagógico no apoio educacional destas frações que, por diversas razões, percebem dificuldades acadêmicas. Ressalva-se, somente, que tais responsabilidades não se encerram na assistência estudantil, sendo compartilhadas com toda a universidade.

Compreendemos, inicialmente, que nunca a Universidade refletiu tanto a composição social da população brasileira, nunca se pareceu tanto com o perfil do país e sua diversidade. Diversidade estratégica, que além de produzir justiça enriquece e amplia as potencialidades das IFES. Compreendemos também, por outro lado, que o perfil discente das IFES hoje requer, mais do que nunca, a presença marcante da assistência estudantil. Inicialmente entendida como um direito, tal como a Constituição e o Estatuto da Juventude advogam. Jamais como um favor, uma dádiva ou um privilégio. No limite, a assistência estudantil deve agir para evitar a perda de vínculo e de rendimento acadêmico daqueles que, por inúmeras razões, encontram-se em situação de vulnerabilidade social e econômica. Portanto, uma vez que o direito à educação é universal, devemos evitar que as desigualdades de qualquer natureza impeçam a fruição deste direito. Em síntese, este mecanismo é imprescindível para uma universidade democrática, mas também, para uma sociedade democrática. Esta é a maior contribuição deixada pela IV Pesquisa de Perfil dos Discentes das IFES. Sua seriação histórica deve ser continuada, bem como ampliada para outros grupos de estudantes tais como os de pós-graduação.

Por tudo isso, reivindicamos que o MEC continue com o processo de ampliação dos recursos orçamentários para o PNAES, transforme o Programa Nacional e Lei Federal, recomponha o quadro de servidores na área da assistência estudantil e abandone qualquer ação na direção do fim da gratuidade do ensino superior público para que o sonho da maioria de discentes das IFES não se transforme na maior onda de evasão que o país já assistiu. Estes são os desafios colocados.

 

Brasília, 04 de setembro de 2016.

fonaprace

 

 


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